segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A cidade educadora e um espírito que chama atenção





A cidade educadora e um espírito que chama atenção




Marília Dourado *
Que espírito é este? É o espírito de cooperação, mudança de tempo em tempo, reconhecimento de cada indivíduo como um ser único e singular, respeito ao outro, abertura ao diálogo, construção da prática educativa de maneira coletiva e participada. Este espírito se vive na educação para a infância e em uma cidade como um todo, na Reggio Emilia, localizada no norte da Itália, pequena e acolhedora, é também charmosa, inquieta, aconchegante, cultural e com uma presença forte de marcas medievais pelas ruas.

As marcas da Reggio Emilia são fonte de inspiração. Nela tem características que chamam a atenção e traduzem muito de um espírito próprio. Na chegada, suas pontes projetadas pelo renomado arquiteto espanhol, Santiago Calatrava recebem visitantes e comunicam a marca cosmopolita e de diálogo e relação com o mundo. Relação esta que começou a ser construída e cultivada depois da 2ª Guerra Mundial, quando um grupo de mães resolve reconstruir a cidade tendo como foco as crianças e as possibilidades de aprender democraticamente em uma comunidade educativa. Essas mulheres tiveram um grande incentivador, Loris Malaguzzi, educador e artista, dedicou toda sua vida a construção de uma experiência de qualidade educativa que, a partir de uma enorme escuta, respeito e reconhecimento das potencialidades dos meninos e meninas, lutou para que todos reconhecessem o direito destes de ser educados em contextos dignos, exigentes e de acordo com suas capacidades.

Reggio Emilia é uma cidade fundamentalmente preocupada com as crianças com seu jeito vivo, inquieto e particular, com os adultos que se reconhecem educadores e, por isso assumem uma postura questionadora, não temem as suas dúvidas e reconhecem a importância de estar sempre aprendendo e, com a escola, como um espaço social, aberto, vivo e ciente do tempo em que vive, com os desafios do mundo atual, complexidades e crises. Crises estas que muitas vezes são reflexos da ausência de sensibilidade dos homens, de uma escuta atenta e da perda de um olhar cuidadoso e respeitoso ao ser humano.

Explorar os diferentes espaços deste lugar e dialogar com as várias expressões encontradas a cada esquina é viver emoções que falam forte ao coração, a alma da gente, é cultivar a esperança de que é preciso e é possível transformar a realidade, construir uma sociedade de valor para a geração atual e para aquelas que estão por vim.

Na Reggio Emilia tem uma associação, a Reggio Children, que, sem fins lucrativos, coordena o Centro Internacional para a defesa e promoção dos direitos e potencialidades dos meninos e meninas, desde 1994, promovendo intercâmbios pedagógicos e culturais com profissionais de todo o mundo.

Se encarrega também de organizar iniciativas de formação, seminarios, cursos, visitas guiadas aos Centros de Infância e exposições (como a famosa exposição “As cem linguagens da infância”, que visitou mais de 30 países de 4 continentes, vindo ao Brasil em duas ocasiões) para difundir a proposta educativa Reggiana.

Todos os anos, diferente grupos de educadores de diversos países, visitam a Reggio Emilia para entrar em diálogo com a sua experiência, buscar referências e estabelecer intercâmbio pedagógico e cultural. Há 3 anos um grupo de educadores brasileiros, participa deste intercâmbio promovido por uma associação latino americana que articula hoje 8 países (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Paraguai, Peru e República Dominicana) – a RedSOLARE Latino America. Em fevereiro do ano de 2009, um grupo de 25 educadores brasileiros coordenados pelas RedSOLARE Brasil e México, esteve na Reggio Emilia e constatou pelas experiências vividas que ali há muita coerência entre o que é dito e o que é feito. Durante uma semana foi possível ver, ouvir e sentir uma cidade que faz a diferença na formação das crianças. Ao longo da semana, além de participar de visitas às Creches e Centro de Infância, dialogamos com educadores, visitamos Mostras dos percursos e histórias da educação na cidade, fomos a inauguração de uma nova Escola, para atender o multiculturalismo que tem crescido de maneira surpreendente na cidade, participamos do Dia do Conto, todos os moradores da cidade foram convocados a parar suas atividades durante 30 minutos as 20:00 para contar histórias para as crianças.

No ano de 2009, chegamos à cidade para participar do grupo de estudos em pleno carnaval e as crianças da cidade brincavam em praças públicas, com diferentes jogos educativos a sua disposição, com fantasias típicas do universo infantil e os seus pais presentes, participavam de todos momentos garantindo lazer e segurança. Partimos no domingo seguinte com os cidadãos reggianos participando de um grande dia de protesto, em que cada pessoa, por iniciativa própria escolhia o seu foco de atuação, armava a sua barraca e convocava a população para reflexão e ação. Vimos mobilização pela educação, alimentação saudável, saúde pública e outros diferentes temas.

Já nos dizia Loris Malaguzzi, responsável pelos sonhos construídos na Reggio Emilia que as conexões e interconexões no mundo são mais fortes do que imaginamos. E, por isso mesmo, ele defendeu a construção de redes de relações como possibilidades criativas de expressões e comunicações múltiplas para a transformação das nossas contradições e superação dos desafios atuais.

É por tudo isso que acreditamos que este espírito da Reggio Emilia pode e deve povoar as nossas cabeças e corações e convocar cada cidadão do nosso país a fazer a diferença pelas crianças brasileiras que muitas vezes não tem direito a infância.

* Marília Dourado é pedagoga, consultora em educação, representante nacional da RedSOLARE Brasil e membro do network Internacional da Reggio Children.