terça-feira, 19 de novembro de 2013

Discurso de Paulo Freire no Congresso em Reggio Emilia

16/setembro/1990.

“Não consigo conceber um educador que trabalhe sem esperança e pare de procurar a liberdade”.


O CANTO DA LIBERAÇÃO

Temos o prazer de iniciar a publicação de uma série de palestras e contribuições que enriqueceram o Congresso Internacional de Reggio Emilia sobre “Comparando Saberes”, que aconteceu nos dias 28, 29, 30 e 31 de março de 1990.

A primeira palestra é a de Paulo Freire, uma das figuras mais amadas e carregadas de histórias da pedagogia internacional. Procurarei repetir o exercício que amo fazer quando estou sozinho ou nos seminários com os meus alunos e, isto é, procurar familiarizar com um fato ou um conceito e, fazendo perguntas a mim mesmo e aos outros, conseguir penetrar na intimidade do fato ou conceito e depois começar a despi-lo, com o objetivo de revelá-lo, de procurar tocar a sua substância para entendê-lo ou conhecê-lo melhor.

Em última análise, este exercício é já, por si só, uma experiência de aprendizado que implica e envolve curiosidade, disponibilidade para arriscar, humildade, tenacidade, sem as quais acredito que não exista a possibilidade de conhecimento. Então, o exercício que tentarei, pelo mesmo para mim mesmo, senão necessariamente para todos vocês, é, por exemplo, apresentar um processo educativo, a experiência de ensinar, de educar, como conceito abstrato, para tentar usá-lo concretamente e depois vê-lo ou percebê-lo de novo, nos elementos que o constituem.

Considero que conseguiremos fazer isso rapidamente, sem perder muito tempo. Vemos e sabemos bem como não pode existir uma experiência de processo educativo sem o educador.  É irrelevante o fato de o educador ser um professor que trabalha com as crianças ou com estudantes universitários ou uma mãe ou um pai, agindo numa situação informal, não importa. O educador, obviamente, é um dos elementos sem os quais não pode existir o processo educativo.

Obviamente, o outro elemento é o educando, a criança, o garoto, o jovem, o homem.  Mas as duas figuras não bastam para criar a situação educativa.
Não há situação educativa sem conteúdo para se ensinar

Há uma mediação absolutamente indispensável para se compreender criticamente o processo educativo: trata-se do conteúdo, do objeto a ser ensinado, a ser aprendido, a ser conhecido. Naturalmente, eu acho que eu posso afirmar que não pode existir uma situação educativa sem conteúdos para se ensinar.

A pergunta, não necessariamente de natureza pedagógica, mas política, é: quem define os programas, quem escolhe os conteúdos. Trata-se de uma questão política no sentido que leva em consideração o currículo, mas o que é impossível é a existência de uma situação educativa sem professores, alunos, educadores, educados e objeto de conhecimento.
Acho que agora podemos dizer que “educar” significa também, não somente mas também, colocar em prática uma certa teoria da aquisição do conhecimento. Não pode existir uma situação educativa na qual não esteja envolvida em certa medida a teoria do conhecimento.

O que me parece inacreditável é como os educadores, em geral, não seguem um currículo ideal ao longo da sua formação escolar. Eu não gosto do verbo “to train” em inglês. É uma questão pessoal. Prefiro “to form”, “formation” em francês, português, espanhol.
Eu não gosto muito de “training” , mas, ou apesar disso,  talvez tenha o mesmo significado, a mesma origem semântica que considero imprescindível em uma situação, mas na minha língua materna tem um significado diferente e é disso que deriva a minha antipatia : “treinar” em português não é bonito.

Conhecer o significado do “saber”

Eu estava dizendo que acho um absurdo que os novos professores percorram todo o seu percurso escolar, durante o qual aprendem a ensinar, sem se ocupar por pelo menos um semestre de teoria de aquisição do conhecimento, do que realmente significa “saber”. Mas, a este ponto do meu exercício, para fazê-lo corretamente, devo me fazer algumas perguntas. Sim, naturalmente, em uma situação educativa concreta, teremos sempre os professores, os alunos, os objetos de conhecimento, os conteúdos. Uma primeira pergunta poderia ser esta: “Sim, naturalmente há sempre um objeto para se conhecer, para se ensinar, mas que tipo de objeto é? Quem tem o direito de escolhê-lo?” Penso que esta é uma pergunta muito importante. Em geral, as velhas gerações afirmavam que naturalmente são os adultos que têm o direito de escolher os conteúdos do processo educativo, já que eles já sabem o que os jovens devem aprender. Penso que isso se chama arrogância. Todos vocês, nesta manhã, falaram muito não só dos direitos das crianças, mas também das possibilidades que elas têm de aprender e de como aprendem. Vale dizer que se trata de uma questão de teoria do currículo: quais deveriam ser os conteúdos para ensinar? Quais são os interesses em nível local e as eventuais contradições entre os diversos níveis, local, nacional e internacional que, por exemplo, comportam um certo tipo de conhecimento?

A educação não é “neutra”.
Uma outra pergunta, por exemplo, poderia ou deveria ser a seguinte: “saber isso ou aquilo a favor de quem? A favor de quê?” e, quando nos perguntamos “a favor de quem”, implicitamente, entendemos “contra quem”?

Trata-se de uma pergunta muito séria e que muitos não gostam dela, enquanto consideram que está tudo bem, desde que a educação continue sendo neutra, já que muitos pensam que seja. De fato e, apesar disso, não é. Não existe algo denominado “neutralidade da educação”, a educação é política pela sua natureza e, portanto, é impossível até dizer que se fala da dimensão política da educação; não há dúvida que a dimensão da educação é, por sua natureza, política. O próprio fato de que a educação segue uma diretriz exclui automaticamente a sua neutralidade. Não é possível entrar em uma categoria como esta afirmando amar a humanidade e depois, como educadores, não amar a humanidade.

Não, não é verdade. Eu digo sempre que, obviamente, não tenho o direito de impor as minhas escolhas aos meus alunos, é uma outra questão. Porém, eu tenho o direito de sonhar e os j meus sonhos são políticos, e não pedagógicos. São sonhos políticos revestidos de aspectos pedagógicos, mas que, substancialmente, permanecem políticos. O gosto da liberdade que eu penso ter não pode ser neutro, enquanto há liberdade, e eu preciso saber para quem ou para o que eu procuro a liberdade. Então, penso que o educador, todos os educadores deveriam fazer-se essas perguntas todos os dias e não para memorizá-las mecanicamente, mas com o objetivo de interiorizá-las existencialmente.

Por isso o conhecimento não pode ser neutro. Não tenho o direito de adquirir conhecimento de maneira neutra, eu preciso saber ao que se destina a minha aquisição de conhecimento. Em outros termos: qual é o meu sonho? Qual é a sociedade que eu gostaria de contribuir para criar no meu país? Não se trata somente da sociedade. Há uma certa beleza nos sonhos, há uma ética.
Ensino, aprendizado, conhecimento
Portanto, o próprio processo de aquisição de conhecimento enfatiza como não pode existir a neutralidade da educação, na medida em que nem o conhecimento pode ser neutro. Porém, podemos também nos perguntar “conhecimento a favor de quê, de quem?” Por exemplo, o que tem a ver conhecimento com ensino? Se a situação educativa tem sempre a ver com um certo objeto a ser conhecido, o mesmo constitui  o conteúdo a ser ensinado. Portanto, o conhecimento tem a ver com o ensino. Porém, eu gostaria não de convencê-los, mas dizer-lhes como vejo o ensino, o aprendizado e o conhecimento. E também porque eu os vejo desta maneira.

Prefiro sempre falar da educação como conhecimento. Interessa-me falar mais da teoria da aquisição de conhecimento que procuro encarnar como educador, ao invés de teoria do aprendizado. Antes de mais nada, para mim, a aquisição de conhecimento não tem nada a ver (digo, quase para ser educado) com a transferência de conhecimentos. É importante dizer que não acredito numa abordagem de possibilidades, de modo livre, crítico, na perspectiva que vocês defendem, nesta região, nesta cidade, no tipo de educação que vocês defendem e do qual falavam esta manhã, na ideia que vocês têm das crianças. Não acredito na possibilidade de transferência de conhecimento. O conhecimento não é um pacote que aqueles que pensam possuir transferem a quem, segundo eles, não o possui. O conhecimento é algo que requer sujeitos, uma atitude criativa dos sujeitos, e não objetos. O processo de conhecimento requer que os sujeitos interajam, que ajam com curiosidade, disponibilidade para arriscar, ação e reflexão. A aquisição do conhecimento através destes elementos requer que todas as pessoas envolvidas na mesma compreendam o profundo significado dos objetos a se conhecer.

Não posso saber se estou rodando em volta do objeto. Não posso saber se me encontro na superfície. E isto porque, por exemplo, muitos não conseguem servir-se do que é um, só um, dos momentos do conhecimento: a leitura.  Muitos fazem erros, confundem a leitura do texto com o permanecer na superfície.

Se permanecermos na superfície do texto,  nunca poderemos colher o seu significado íntimo e, portanto, não poderemos recriá-lo. Por isso é tão difícil adquirir conhecimento se não formos livres, já que adquirir conhecimento implica correr riscos e, quando temos medo, não conseguimos arriscar. A liberdade precisa ter obstáculos para se tornar liberdade. Para lutarmos pela liberdade temos que perdê-la, mas manter sempre viva a sua lembrança, pelo menos na imaginação. Eu sei o que significou para  mim ficar na prisão, o quanto eu entendi e amei a liberdade.  Sobretudo quando me colocaram por alguns dias numa cela com 1 metro de altura e com 70 por 60 centímetros, eu não sabia que, no Brasil, tínhamos apartamentos como esse, mas no exército tem ainda. Há uma outra coisa que eu colhi completamente e é uma questão filosófica. Ora, para sermos livres, precisamos ir além da imaginação, dos próprios sonhos, dos próprios sentimentos; devem ser criadas condições materiais para obter a liberdade. Daquela vez, quando eu me encontrava naquela cela, eu podia imaginar o mundo exterior, podia voar com a imaginação , mas estava fechado naquela cela de 1 metro de altura e 70 centímetros. Para ser livre, eu teria que derrubar a porta ou alguém teria que abri-la para mim, senão eu não poderia estar livre, ainda podendo sonhar. A mesma coisa vale para algumas sociedades ou pessoas. Isto é, temos que sonhar, mas também temos que lutar para concretizar os nossos sonhos.

Ensinar não é descrever
Mas, voltemos à questão do ensino e da aquisição de conhecimento. Considero que o processo de ensino ou o ensino seja a maneira em que a ação cognitiva do educador ou do professor é feita para dar aos alunos a prova de como se faz para conhecer. Não sei se é complicado. Em outros termos, quando ensino, obviamente procuro tratar o assunto com clareza. Sob um ponto de vista metodológico, para mim é muito importante decidir qual é a abordagem com os assuntos que permita aos alunos aprender com mais facilidade, mas procuro também dar o exemplo, a prova de como enfrento o assunto, de como ensino, de como procuro conhecer o objeto. Por isso, eu nunca descrevo. Essa é uma das ilusões que muitos dos bons “descritores” têm com relação ao ensino.

Muitos fazem coincidir o bom professor com o bom “descritor”. É um simples descritor aquele que descreve, que fala do objeto como se estivesse contando histórias relativas a ele. Eu penso, ao contrário, que o aprendizado é o método crítico com o qual os alunos julgam o objeto com o objetivo de ”compreendê-lo”. Considero que o aprendizado seja possível somente depois de ter compreendido o objeto. É importante dizer que, na medida em que “com-preendo” o objeto, o seu significado, depois eu posso memorizar o conceito, a descrição do objeto.
O que eu acho impossível é memorizar antes e conhecer depois. Pelo contrário, primeiro conhecemos e, enquanto conhecemos, memorizamos.

Educação é democracia
Portanto, impor aos alunos escrever cem vezes “Não farei mais isso”  para fazê-los aprender um certo tipo de comportamento é uma coisa absurda, além de ser antidemocrática, já que não é assim que se aprende na verdade. Portanto, os professores devem trabalhar democraticamente, sem arrogância e com humildade. Penso que uma das principais qualidades de um professor progressista seja a modéstia, a convicção de saber algumas coisas, mas não todas, a certeza de que os alunos também sabem muitas coisas, quem quer que eles sejam, e, sobretudo, de que têm a possibilidade de conhecerem mais e melhor.

Quanto mais os professores trabalham nessa direção, estimulando e desafiando os alunos a arriscar, a aceitar a aventura, a criar, a exercitar a curiosidade, a capacidade de fazer perguntas, mais eles trabalham a favor da liberdade. Tenho certeza de que esta é uma das questões de que todos nós, homens e mulheres, encontramo-nos mais uma vez para enfrentar neste final de século. Trata-se do problema da liberdade, do gosto do risco, da criatividade. Nesta manhã, eu dizia a Anita, após ter escutado as palestras das quais eu falei, que são necessárias verdadeiras mudanças. Todos nós, de uma maneira ou outra, estamos comprometidos em criar um novo mundo. Eu me lembrava, também, por exemplo, dos esforços feitos. Eu vejo o enorme compromisso que há aqui para a criação de uma escola livre, que permita o crescimento, eu sei, porque vivi isso no meu país.

Eu sei o quanto é difícil fundar uma escola democrática, uma escola pública, mas sei também o quanto é maravilhoso. É uma das batalhas que estamos tendo agora em São Paulo, estamos lutando para obter escolas assim.

A educação é arte, esperança, processo de libertação
Atualmente, temos 356 escolas de Educação Infantil e 360 escolas de Ensino Fundamental, quase 1.000.000 de alunos, 30.000 professores com os quais eu me confronto. Mas eu sei o que significa introduzir procedimentos democráticos, o que significa confrontar-se com uma certa tradição autoritária da sociedade brasileira, convidar os professores a acreditarem nas crianças, obviamente a maioria acredita em si próprio, mas no Brasil temos, dentro de nós, um certo gosto pelo autoritarismo. Todos nós temos a convicção de que devemos continuar, devemos superar a convicção de que o ensino é uma mera transferência de conhecimento, a imposição de conhecimentos aos alunos. Em última análise, considero que, vivendo a experiência de ensinar de maneira nova, convidando os alunos a conhecerem, devemos enfatizar também a outra característica do processo educativo, isto é, a sua beleza, vale dizer que, no seu ser de natureza política, a educação é também um processo de conhecimento, é também uma experiência estética, sintetizando, é arte. Sou tão radical nesta minha convicção, que não aceito nem falar da educação através da arte para citar as crianças, a literatura fantástica, pois, para mim, a educação é arte em si própria, o educador é um político, um intermediário do conhecimento, um artista que vive na beleza. Formar os alunos e ajudá-los a se tornarem cada vez mais si mesmos é uma coisa maravilhosa. É um processo que tem em si algo de muito bonito: penso que nós, como educadores, não deveríamos só falar disso, mas viver isso, assumir o risco que isso implica, mas também da esperança, que é seu elemento fundamental. Confesso que não consigo conceber um educador que trabalhe sem esperança. Entendo que todos nós, em certos momentos do dia, podemos perdê-la. Eu também às vezes me pergunto: “o que estou fazendo neste escritório?” “por que não volto para casa para ler, escrever, por que não vou passear?” Mas fico. O que eu acho impossível é ensinar sem estar cheio de esperança. Porém, a esperança não pode sobreviver se não há futuro, ela não está nas nossas costas, mas está na frente. E temos que ter a capacidade histórica de seguir em frente, de criar um novo canto, uma sociedade nova, isto é, dar a nossa contribuição. Por isso mesmo, quando falo em educação, penso em um processo de aquisição de conhecimento não a favor da liberdade,  mas da libertação, já que amo a liberdade, mas ela não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida. E prefiro o processo com o qual nos tornamos livres, isto é, a libertação, já que não tem fim. Nunca paramos de procurar a liberdade. E acredito que, quanto mais vivemos a educação como processo de aquisição de conhecimento, ao invés de transferência de conhecimento, mais nos comprometemos com o processo de libertação.


Tradução livre: Thaís Bonini

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